Por Airton José da Silva.
http://www.airtonjo.com/essenios08.htm
A Organização da Comunidade
Dissemos antes que os habitantes de Qumran não se autodenominam "essênios". Então, como é que eles chamam a sua organização?
Nos manuscritos o nome mais utilizado para indicar o grupo é yahad, "comunidade", que só na 1QS aparece mais de 60 vezes. A Regra leva este título, como aparece em 1QS I,1: "Para [o Instrutor...] ... [livro da Regra da Comunidade (serek hayahad) : para buscar a Deus [com todo o coração e com toda a alma..."
A Regra da Comunidade tem dois anexos, um dos quais é chamado de Regra da Congregação, sendo o termo 'adah, "congregação" outra autodenominação do grupo de Qumran. 1QSa usa-o 21 vezes. Diz 1QSa I,1:"Esta é a Regra para toda a Congregação (haserek lekol 'adat) de Israel nos últimos dias...".
Além destes dois termos, os qumranitas se autodesignam também como 'asah, "conselho" (1QS I,8.10;2,25 etc), sod, yasod, mosad, "assembleia", "sociedade" e harabbim, "os numerosos", "os muitos". Além de "os santos", "resto", comunidade da "nova aliança" e outros semelhantes[56].
Na organização interna da comunidade de Qumran observa-se a predominância dos sacerdotes (= filhos de Aarão) sobre os leigos, como exemplifica 1QS IX,7-8 que diz: "Só os filhos de Aarão terão autoridade em matéria de juízo e de bens, e sua palavra determinará a sorte de toda disposição dos homens da comunidade e dos bens dos homens de santidade que caminham na perfeição".
O órgão supremo de governo da comunidade, com poder judicial e executivo é a "assembleia dos numerosos" (môshab harabbim), descrita em 1QS VI, 8-13. Essa assembleia reúne-se para discutir a Lei, os negócios da comunidade, acolher ou rejeitar novos membros, ouvir as acusações contra os culpados de alguma transgressão etc.
Mais restrito que essa grande assembleia é o "Conselho da Comunidade", composto por doze leigos e três sacerdotes, como diz 1QS VIII, 1: "No conselho da comunidade haverá doze homens e três sacerdotes, perfeitos em tudo o que tiver sido revelado de toda a lei..."
É possível que estes doze leigos representem as doze tribos de Israel, enquanto os três sacerdotes representariam as três famílias sacerdotais descendentes de Levi, através de Gérson, Cat e Merari (Cf Gn 46,11). Mas a sua função não é bem conhecida. Seriam estes homens uma elite especial na comunidade? Ou um quorum mínimo de liderança do grupo? Se a Regra da Comunidade tem vários níveis redacionais, como creem alguns, este Conselho poderia representar o primeiro estágio de formação da comunidade de Qumran, que teria evoluído para uma organização mais complexa nos decênios seguintes.
Os documentos falam também das comunidades-base que são compostas por dez membros, e nas quais deve haver um sacerdote para aconselhar e um especialista na Lei para instruir os companheiros. É o que diz 1QS VI, 3-7, do qual cito trechos: "Em todo lugar em que houver dez homens do conselho da comunidade, que não falte entre eles um sacerdote; cada qual, segundo a sua categoria, sentar-se-á diante dele, e assim se lhe pedirá o seu conselho em todo assunto (...) E que não falte no lugar em que se encontram os dez um homem que interprete a lei dia e noite, sempre, sobre as obrigações de cada um para com seu próximo".
O responsável por toda a comunidade é o mebaqqer, "inspetor" (1QS VI, 12.14.20), às vezes chamado de paquid, "presidente". Ele é o administrador dos bens da comunidade, e aquele que ensina e guia. Ele preside a assembleia geral. Há também o maskîl, "instrutor", dedicado à formação espiritual.
O sistema de admissão na comunidade é bastante rigoroso. Temos as informações da Regra da Comunidade e de Flávio Josefo sobre o assunto[57].
O candidato, que deve ser israelita, passa inicialmente por um rigoroso exame feito pelo líder da comunidade "quanto a seu entendimento e a seus atos". Se for considerado apto, ele é instruído nas regras da comunidade e viverá como um deles durante um ano, mas fora da comunidade.
Após esse ano, caso seja aprovado pela assembleia, o candidato ingressa na comunidade, mas durante um ano inteiro não participa de suas refeições comuns nem da comunhão de bens. É um tempo de aprendizado, certamente guiado pelo "instrutor".
Ao término desse segundo ano, inicia o candidato um terceiro ano no qual entrega seus bens ao tesoureiro da congregação e continua sua formação, mas ainda sem participação integral.
No fim desses três anos, se aceito pela assembleia, o candidato passa a participar integralmente da comunidade, com direito às purificações rituais, banquete, voz e voto nas assembleias e comunhão de bens.
Mas, como é que a comunidade se vê, qual é seu ideal? 1QS I, 1- 11 diz que "os santos" ingressam no grupo e vivem de acordo com a Regra da Comunidade "Para buscar a Deus [com todo o coração e com toda a alma; para] fazer o que é bom e o que é reto em sua presença, como ordenou pela mão de Moisés e pela mão de todos os seus servos os Profetas; para amar tudo o que ele escolhe e odiar tudo o que ele rejeita; para manter-se distante de todo mal, e apegar-se a todas as boas obras; para operar a verdade, a justiça e o direito na terra, e não caminhar na obstinação de um coração culpável e de olhos luxuriosos fazendo todo mal; para admitir na aliança da graça todos os que se oferecem voluntariamente para praticar os preceitos de Deus, a fim de que se unam no conselho de Deus e caminhem perfeitamente em sua presença, de acordo com todas as coisas reveladas sobre os tempos fixados de seus testemunhos; para amar a todos os filhos da luz, cada um segundo o seu lote no plano de Deus, e odiar a todos os filhos das trevas, cada um segundo a sua culpa na vingança de Deus".
Segundo os arqueólogos, vivem em Qumran entre 150 e 200 pessoas. Em dois séculos de existência da comunidade deve viver ali cerca de 1.200 pessoas. A partir das ferramentas encontradas e das instalações escavadas sabe-se que eles cultivam a terra - no estabelecimento agrícola de Ain Feshka, ao sul das ruínas - fazem cerâmica, curtem peles e copiam manuscritos. Além disso, 1Q VI,2-3 diz que eles comem juntos, rezam juntos e deliberam juntos.
A quebra da ordem interna, pela desobediência às regras da comunidade, é duramente punida. As penalidades vão desde 10 dias de punição - com simples exclusão de rituais da vida comum - até a expulsão definitiva da comunidade. Os crimes mais graves são a transgressão de qualquer ponto da Lei mosaica, o uso do nome de Deus, a calúnia contra a congregação e a obstinação continuada de alguém no erro, mesmo após muitos anos de vida comunitária[58].
Os essênios não vivem apenas em Qumran. Muitos habitam cidades e aldeias da Palestina, espalhando-se por todo o país em "acampamentos", como diz o Documento de Damasco. É possível que o movimento essênio seja anterior ao surgimento da comunidade de Qumran, que talvez represente apenas um de seus ramos.
Flávio Josefo já nos diz que eles "Não têm uma cidade única, mas em cada cidade compõem com alguns outros uma colônia"[59].
E Fílon traz a seguinte informação: "Eles habitam numerosas cidades da Judeia e também diversas aldeolas e agrupamentos com grandes efetivos"[60].
Em Qumran os essênios vivem em regime de celibato, mas as outras comunidades não, pois diz o Documento de Damasco: "E se habitam nos acampamentos de acordo com a regra da terra e tomam mulheres e engendram filhos, caminharão de acordo com a lei e segundo a norma das instruções, segundo a regra da lei que diz: 'Entre um homem e sua mulher, e entre um pai e seu filho'" (CD VII, 6-9).
Diz a Regra da Congregação que o membro da comunidade deve se casar aos 20 anos de idade: "À idade de vinte a[nos passará] [entre] os alistados para entrar no lote em meio à sua família para unir-se à congregação santa. Não se [aproximará] de uma mulher para conhecê-la por ajuntamento carnal até que tenha cumprido os vinte anos, quando conheça [o bem e] o mal. Então ele será recebido para dar testemunho sobre os preceitos da lei e para ocupar o seu lugar na proclamação dos preceitos" (1QSa I,8-11).
Além disso, no Documento de Damasco nunca se fala da mesa comum nem do banquete sagrado, tão importantes em Qumran. Por outro lado, admite a propriedade privada (CD IX, 10-16), sendo entregue ao "inspetor" apenas o ganho de dois dias por mês. Em Qumran há total ruptura com o Templo de Jerusalém, enquanto que o Documento de Damasco regulamenta o envio de oferendas e sacrifícios ao Templo e dá normas sobre como se comportar durante a permanência em Jerusalém (CD XI, 19-XII, 2).
Para entrar na comunidade de "Damasco" basta a entrevista com o inspetor geral e um juramento (CD XIV,11; XV,5-7). E além dos sacerdotes e leigos, como em Qumran, o Documento de Damasco fala em prosélitos.
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[56]. Cf. LAMADRID, A. G., Los descubrimientos del mar Muerto, p. 126.
[57]. Cf. 1QS VI, 13-23; JOSEFO, F., Bellum Iudaicum II, VIII, 137-142.
[58]. As penalidades estão elencadas em 1QS VI-VII. Cf. VERMES, G., Os manuscritos do mar Morto, pp. 19-20. As penalidades mais rigorosas certamente surgem com o crescimento da comunidade na época da perseguição de João Hircano I aos fariseus. Este crescimento deve ter dificultado a fidelidade aos objetivos originais. Cf. POUILLY, J., Qumrã, pp. 30-45.
[59]. JOSEFO, F., Bellum Iudaicum II, VIII, 124.
[60]. FÍLON DE ALEXANDRIA, Apologia pro Iudeis, § 1.
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